sexta-feira, 28 de maio de 2010

Reflexo


Olha para ti. Chega perto da margem desse rio e procura o teu reflexo. Não esperes ver quem és. A água nada mais pode mostrar-te que o teu rosto. Aquilo que és, a tua essência, essa, nunca ninguém a verá.
Mas mesmo assim, olha. Vê aquilo que os olhos de todos os outros cruzam quando chamam o teu nome. Vê-te, não como sentes ser. Vê-te como os outros te sentem. Repara nos traços do teu rosto, no contorno do teu perfil, nas imperfeições na tua pele. Confronta-te.
É o teu corpo que as ondas suaves do rio embalam. Distorcem-no enquanto se agitam contra a orla. Mas tu, aí parado, a olhar para elas, sentes-te inerte. Nada em ti se move.
Olha para ti. Agora que aí estás, em frente do desenho imperfeito de quem és, observa como é frágil a estrutura que te mantém vivo para todos os outros. Para eles, tu és somente isso. Um perfil desconhecido, um corpo que anda, respira, ouve, cheira…
Mas tu sentes-te mais, tanto mais. Pensas que podes mudar o mundo, sonhas que o mundo mudará por ti.
Levanta o rosto. Olha à tua volta. Passam dezenas de outros perfis à tua beira. Achas que algum deles se apercebe dos teus desejos? Achas que algum desses rostos desconhecidos repararia se, de repente, o ar deixasse de percorrer-te os pulmões?
Mas mesmo assim, percorre-los com o olhar. Espias os seus gestos. Tentas vê-los a todos…por dentro. Procuras a essência perdida em cada rosto igual ao que passou. Memorizas os sorrisos contagiantes e as tezes tristes.
E quando a rua fica deserta e miras novamente o rio o teu reflexo desapareceu. Não, o teu corpo não se tornou invisível, foi simplesmente a noite que caiu…

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Escuta


[Shhh, a noite está a sussurrar...]

domingo, 16 de maio de 2010

Quase-certeza


O difícil na vida não é termos de fazer escolhas. O que nos corrói por dentro e destabiliza as nossas quase certezas é aprender a viver com elas.
Por mais que queiramos nunca vamos tomar aquela decisão capaz de pôr toda a nossa vida no eixo correcto. Porque, simplesmente, ela não existe.
Hoje acordei com vontade de esquecer tudo aquilo que, penso, tenho vindo a decidir nos últimos anos. Perguntas-me se o fiz, se esqueci… E a resposta é previsível, mas é a única que posso dar-te. Por mais que esse desejo fosse incomportável, nunca conseguiria pô-lo em prática.
Há escolhas que não estão disponíveis na prateleira do futuro.
Pensa assim: é como se caminhasses na floresta, esfomeado por uma qualquer semente que te aliviasse a fome inexplicável que te consumia. E, então, ao afastar um arbusto, encontras rebentos de uma fruta aparentemente deliciosa. O teu instinto será colhê-los de forma a saciares esse desejo por alimento. Mas eles são venenosos. E tu sabe-lo. Se os provares a tua caminhada termina metros à frente.
É assim também com os cruzamentos que nos vão sendo postos à frente ao longo desta caminhada, um pouco mais longa. Às vezes, surge uma estrada larga, repleta de luz, ladeada de um caminho estreito, cheio de pedras e espinhos.
Aprendi a acreditar no segundo. Não que a vida tenha de ser sempre dolorosa e formada por atalhos que custam a ultrapassar. Mas a recompensa é sempre mais doce quando os passos demoram a habituar-se ao trilho. Além disso, por este carreiro nascem flores em redor das pedras e sopra um vento fresco que me seca as gostas de suor no pescoço. E, como há menos pessoas, posso descansar sempre que as pernas vacilam, e ninguém me olha desconfiado quando me deito sobre as ervas a ver o pôr-do-sol.
Sim, certamente os outros chegarão mais cedo. Mas eu chegarei mais rica. Mais forte, mesmo que a minha pele mostre marcas das arranhadelas e o meu corpo pareça mais frágil. É que não é por aparentar mais cansaço que estou mais perto de desistir. Aqueles que nunca iniciaram a caminhada desistiram antes de mim.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Try again


Porque há alturas em que não nos apetece rir, mas apenas sorrir.
Porque, de vez a vez, não suportamos escutar e se torna mais sustentável ouvir somente.
Porque há manhãs em que acordamos e as lágrimas secaram, e só sobra a tristeza.
Porque há momentos em que se consomem as palavras e esta folha fica em branco. Horas a fio, dias até, sem que uma letra se deslinde pelas linhas.
É por tudo isto que amanhã quando saíres à rua e vires aquela criança a correr atrás da borboleta que hoje te passou ao lado vais rir, em vez de esconderes a alegria atrás de um sorriso aborrecido.
É por isto que amanhã irás escutar com atenção as palavras de quem te fala com ternura. Sim, vais emprestar a tua atenção por completo, em vez de fingires que as suas palavras te percorrem o intimo.
E amanhã, quando aquela dor que escondes não couber mais no teu peito, deixarás que espreitem dos teus olhos lágrimas quentes e salgadas. Vais deixar que te aliviem a mente, em vez de te limitares a mostrar essa tez pálida e soturna.
E quando chegares à noite, e a tua lembrança palpitar de vontade por guardar os pensamentos que passeiam pelos seus labirintos, vais pousar a folha de papel branca sobre a mesa. Vais agarrar no lápis de carvão e escrever. Qualquer coisa. Qualquer palavra que te perpasse as ideias.
Ninguém disse que todos os dias te obrigam a encarnar as mesmas emoções e desejos. Ninguém te obrigará a seres feliz a todas as horas. Só tens de te manter vivo. Quando não tiveres força para gritar, sussurra, alguém vai ouvir. Quando não fores capaz de correr, caminha, porque alguém se acalmará para andar a teu lado. E quando o ar te engasgar ao percorrer as tuas veias, abranda e tenta de novo.
E, sempre que a palavra desistir te aflorar o pensamento, apaga-a do teu vocabulário. Afasta-a para longe, a distância que seja suficiente para que ninguém a agarre e a leve consigo.

domingo, 2 de maio de 2010

A sombra



Sufocam-me as tardes sem vento. Apertam-me a garganta estas manhãs sem silêncio e as noites em que as estrelas estão distantes de mais para que os meus olhos as possam ver.
Asfixia-me este ar irrespirável, esta rotina sem horas pelas quais o meu coração possa bater mais forte. Ferem-me a íris as luzes indiscretas que sobressaem por entre as frechas da janela.
Um dia vi-te caminhar assim. Dizias estar vivo, mas para o meu instinto aventureiro parecias um vulto de alguém, uma sombra que se limita a copiar os movimentos de um corpo que respira.
Dizias que não, mas era isso que eras. Mais um clone por entre os tantos que vagueiam pelas ruas. Hoje senti-me assim. Mais uma.
Será que tem de ser assim? Será que temos de seguir os passos dos outros para que o ar nos percorra as veias?
Eu acreditava que não. Acreditava que utilizaria estas mãos para construir sonhos e as palavras para inventar histórias. Daquelas que nunca ninguém contou. Aquelas que ninguém ouviu. Eu acreditava que o oxigénio seria eterno e sempre nos renovaria os pensamentos.
Mas hoje, senti-me sufocar. Dirás que não respirei o suficiente. Dirás que basta que continue a respirar, como sempre. Mas é que hoje, quando o fiz, o ar apertou-me a garganta e acumulou-se no meu peito.
Lembras-te daquele jardim onde te deitaste a tentar adivinhar os desenhos das nuvens que corriam no céu? Lembras-te daquilo que sentiste?
Eu recordo-me que parecias leve. Quase diria que conseguias flutuar. Parecias solto, dono de ti. Livre. Naquela noite, deitaste sobre as dunas na praia e viste as estrelas. Vimo-las juntos. Sabias os seus nomes, as constelações, as galáxias. Naquela noite conseguias vê-las a todas.
E eu não acredito que o céu da noite de hoje tenha mudado. Mas eu não consigo encontrar uma única estrela. E sei porquê. Porque de tarde, limitei-me a olhar as nuvens pela janela, em vez de as ver passar, deitada naquele relvado.