segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

It's so easy to please...



Era quase noite. Mas o sol ainda pautava a paisagem talvez querendo aquecer as suas peles que gelavam já cientes da solidão do dia seguinte.
Olhavam, abraçados, a cidade à sua frente. Olhavam-na pela última vez. Olhavam-na como se fosse a primeira. Os dedos dela entrelaçavam-se nos da mão enrugada dele e desse toque provinha o único calor daquele anoitecer de Inverno. Dos lábios dele soavam, de vez a vez, palavras que se perdiam no barulho da cidade mas que antes vagueavam pelos ouvidos dela e se acostavam ao seu coração que sentia parar. No resto do tempo era o silêncio das vozes que permanecia, um silêncio de que ambos precisavam e que sempre pautara as suas vidas.
Os cabelos dela eram lisos e esvoaçavam nas suas costas com o vento gélido da invernia. Nenhum deles se mexia, nenhum deles parecia capaz de tocar aquele momento de partilha que sabiam marcaria as suas memórias.
A cidade vivia intensamente. Os carros feriam-nos com luzes indiscretas, as pessoas passavam com olhares perscrutadores, com passos ansiosos. Era estranho olhar aquela cidade naquele anoitecer. Era estranho saber que amanhã não se teriam um ao outro para a enfrentar.
Sentindo adivinhar o seu medo, ele abraçou-a mais forte contra si, arrepiando-lhe a pele. O corpo dela tremia de um frio que ele sabia nunca poderia afastar. Mesmo assim permanecia a seu lado, agarrando a sua mão, dando-lhe a protecção que o mundo lhe roubara.
Sabiam que a hora se aproximava. Naquela noite, naquela que seria a última oportunidade de se olharem e à cidade, de tocarem dentro um do outro, o toque foi subtil e o silêncio tatuou nos seus corpos um laço que nenhum Inverno poderia rasgar.
Naquela que sabiam ser a última noite, enquanto tudo em seu redor prometia ficar igual, usaram o último minuto para inspirar profundamente o frio do ar nocturno. Encostados no peito um do outro perdoaram a distância que ali começava, esperaram o pedido para ficar que nenhum tinha coragem de fazer

sábado, 12 de dezembro de 2009

Balançar




Pedes-me um sonho
para juntar os pedaços
mas nem tudo o que parte
se volta a colar
e agarras a minha mao
com a tua mao e prendes-me
e dizes-me para te salvar
de quê?
de viver o perigo
de quê?
de rasgar o peito
com o quê?
de morrer
mas de que paixão?
de que?
se o que mata mais é não ver
o que a noite esconde
e nao ter nem sentir
o vento ardente
a soprar o coração.

domingo, 6 de dezembro de 2009

A solidão dos números primos





Existem vidas ausentes de passado…E existem passados que tornam a vida ausente de Presente.

Alice e Mattia sobrevivem assim, fechados num momento insubstituível das suas infâncias, presos a um trauma que a idade não consegue superar.
O segredo que as suas palavras não sabem revelar acompanhá-los-á em todo o seu crescimento, refugiando-os em duas personalidades tristes que, apesar de distintas, quase se tocam no que diz respeito à forma como se desenham – a solidão.
Alice sofre com o medo da rejeição pelos colegas, a dificuldade de aceitação num mundo que se quer perfeito e ao qual sente não pertencer. Fruto disso será a bulimia que a acompanhará toda a vida, a ponto de assombrar o seu casamento.
Mattia vive acordado num pesadelo real, culpado do desaparecimento da sua irmã. Nas suas mãos, preenchidas pelos sucessivos cortes que lhe aliviam a dor psicológica, recaem os olhos ameaçadores dos quantos o olham com reprovação.
Vivem anónimos, fechado em si mesmos, como dois números primos perdidos numa sequência que os não deixa sobressair. Olham-se mutuamente, partilham os seus medos em silêncio – o suficiente para se compreenderem; o insuficiente para se tocarem em conforto.

Irão partilhar sonhos, idealizar um futuro sem remorsos, mas vão descobrir que há uma coisa que os sonhos não podem fazer – apagar o passado.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

What do I know?




Eu sei. Sei que nem tudo será assim. Sei que as folhas deste livro estão por folhear, que são impossíveis de ler, por enquanto.
Eu sei. Sei que nem sempre o ar custará a inspirar, que por momentos ele percorrerá as nossas veias sem esforço e que o sufoco parecerá ter desaparecido.
Sim, eu sei que noutras alturas, outras folhas deste livro parecerão ainda mais sumidas, que a história se mostrará sem sentido. Eu sei…
Sei que um dia a criança que hoje brincava no comboio será uma mulher; sei que essa mulher nunca se recordará do meu sorriso ao vê-la hoje desfrutar da inocência da vida. Mas, por outro lado, eu ficarei com essa flash eternamente, a sua ingenuidade marcou o meu olhar ferido pela crueldade da verdade…a falta de inocência.
Eu sei que será sempre assim. Sei que as lágrimas nunca valerão realmente a pena e o desespero não trará conforto. Sei que os sorrisos marcarão um instante volátil, que serão causa de saudade no futuro.
Sei disso, e tanto mais…Mas mesmo assim, mesmo tendo consciência de que muito daquilo que passa por mim nesta longa caminhada ficará para trás, que muitas das pessoas que reflectiram o meu olhar não se lembrarão dele nos momentos de nostalgia, eu sei que ainda não chegou o momento de descansar à beira da estrada. Sei que devo andar um pouco mais.
Sabes porquê? Porque tenho a vaga sensação de que lá à frente, nesse destino que por agora o nevoeiro me impede de vislumbrar, o que era certo hoje será o desconhecido, e aquilo que julgava impossível tornar-se-á realidade.
Não perguntes o que me leva… A única coisa que te posso segredar é que… eu sei.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Just keep breathing




Senta-te aqui. Deixa o teu corpo relaxar, deixa-o descansar da caminhada.
Senta-te ao meu lado. Não precisas de olhar para mim, não precisas de sequer falar-me. Deixa-te, por um momento, levar pelo bailado do vento; deixa que aquilo que te atormenta viaje por esse labirinto de dúvidas que é o horizonte.
Fecha os olhos. Não precisas de mais imagens que te preencham o olhar de angústia, não precisas de mais luz que te fira o vazio da introspecção.
Não, não penses em nada, por favor…Deixa que por este simples instante, estes segundos em que partilhamos em silêncio os nossos medos, a tua mente se abstenha desse esforço. Sei que és capaz, tenta pelo menos…
Sinto o arrepio na tua pele, sinto que tremes com o meu toque. Acalma-te, é apenas a minha mão que busca entrelaçar-se na tua, que tenta dar-te aquilo que perdeste – a sensação aconchegante de um lar.
Olha agora nos meus olhos. Vejo que os teus não encontram os meus, que procuram algo num lugar que não conheces ou sabes como encontrar. Tem calma... Posso não percorrer o mesmo caminho que os teus passos cansados tatuam, mas da minha estrada vejo a tua.
Não, não penses em desistir. Não permitas que o mundo em que te perdeste te proíba de encontrares o trilho. Deixa-me dar-te a mão, deixa-me dar-te força para a próxima inspiração.
A noite cai à nossa frente. Pousa a cabeça sobre o meu ombro e contempla a sua calma. Vê como tudo sossega. Sente a tranquilidade que a vida te pode dar.
Ouço-te respirar profundamente. Sinto o esforço que o teu peito executa para que o ar o percorra, sinto que vacilas. Mas não desistas... Não agora, que a noite cai. Percorre com esse olhar cristalino os milhares de estrelas no céu. Também elas aguentaram todo o dia, também elas perderam o brilho enquanto o sol vivia. Não deixes que o teu cesse por mais esta noite.
Podes ficar aqui. Descansa ao meu lado enquanto o medo te impede de o enfrentar. Mas, enquanto o mundo te assusta, não desistas de tentar. E, se não consegues lutar contra ele, just keep breathing…

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Talvez...


Sim, talvez um dia seja capaz. Talvez um dia esta mão frágil e tantas vezes trémula o consiga. Por agora, estas palavras bastam.
Talvez, um dia, as manhãs cinzentas se dissolvam numa chuva doce que me aqueça a pele. Talvez, um dia, possas saboreá-la comigo.
É tudo tão incerto não é? Tudo tão volátil como aquela folha seca que se soltou da copa daquela árvore, esta manhã.
Talvez, um dia, a árvore não exista sequer, e o vento, aquele que nos emaranhou o cabelo, não tenha o que embalar. Sim, talvez tenhas razão, e valha a pena senti-lo agora, deixá-lo penetrar-nos a alma.
Talvez, quem sabe, o sol deixe de nos aquecer a pele gelada e a noite nos preencha a íris do olhar num suceder de horas sem manhã. Talvez esta seja a última oportunidade para deixarmos os nossos lábios fluírem num sorriso meigo com o pôr-do-sol.
Certeza? Não, não tenho… Como sempre, falta-me a confirmação. Mas, no fundo, a dúvida é muito mais forte, mais capaz de nos dar vida. Senão, pensa comigo… Se tiveres a certeza de que o céu estará azul amanhã, de que valerá encostares o olhar à janela, ao acordar? Se tiveres a certeza de que irei ao teu encontro, como poderás sorrir-me, daquela maneira, ao olhar para mim?
Por isso, sim, talvez amanhã o sol brilhe, talvez nos cruzemos. E esta dúvida chega para fechar os olhos e dormir, esta noite. Amanhã talvez acorde sorridente…talvez.
Talvez amanhã tudo mude e tenha chegado finalmente aquele dia. Ou então, talvez tudo fique como está. Prefiro não ter certezas, porque assim, se amanhã não vieres ao meu encontro não terei esperado em vão…
Escrito ao som de The Portrait - James Horner

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dream




"Não é que não queira nada do mundo, mas quando estamos sós sentimos melhor o imbativel prazer das formas belas"
Pedro Paixão

Não é solidão. É introspecção. É precisar de um bocadinho longe do mundo. É querer simplesmente que as horas parem e nos ajudem a preparar a próxima inspiração.
Não é egoísmo. É só querermos roubar o mundo um bocadinho para nós, querermos que ele nos ouça e pense connosco.
Não, não é tristeza....É o desejo de um nada. O desejo de sussurrar as vozes que nos interpelam no caminho, sem que as conheçamos. O desejo de podermos ser só nós, por um mero instante... curto, tão curto quanto o é fechar os olhos.
Não é que os outros estejam errados, nem que nós estejamos certos. É só um desejo de não os ouvir, de poder mudar o rumo do caminho....De, mesmo estando a errar, tentar começar de novo.
É só a vontade dilacerante de, por uma vez na vida, ouvir os gritos que o coração cala, dia após dia, para não doer mais.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

To build a home


There is a house built out of stone
Wooden floors, walls and window sills...
Tables and chairs worn by all of the dust...
This is a place where I don't feel alone
This is a place where I feel at home...

Cause, I built a home
for you
for me

Until it disappeared
from me
from you

And now, it's time to leave and turn to dust...

Out in the garden where we planted the seeds
There is a tree as old as me
Branches were sewn by the color of green
Ground had arose and passed it's knees

By the cracks of the skin I climbed to the top
I climbed the tree to see the world
When the gusts came around to blow me down
I held on as tightly as you held onto me
I held on as tightly as you held onto me......

Cause, I built a home
for you
for me

Until it disappeared
from me
from you

And now, it's time to leave and turn to dust........

Letra da música To build a home - The Cinematic Orchestra

sábado, 17 de outubro de 2009

Keane, para lá da música

“When you forget your name … Meet me in the morning when you wake “

Podia ser este o conselho de um velho amigo, as palavras de conforto que esperaríamos ouvir no fim do dia, precisamente daquele dia em que desejávamos desaparecer da mira daqueles que, juraríamos, nos olhavam em cada esquina e tentavam amedrontar-nos.

“Cause everyboy’s changing and I dont’t feel the same”

É o pensamento que saltava na nossa mente e que mais ninguém parecia partilhar. E é nesse momento que abrimos os olhos e percebemos que o conselho estava perdido na melodia de uma música, uma música que, temos a certeza, foi escrita para partilhar aquele momento da nossa vida connosco.
Há músicas que têm esse poder e, Tom Chaplin, vocalista da banda britânica Keane, dá voz a muitas delas. Com um reportório e estilo muito próprio e inconfundível, este grupo presenteia-nos com canções que nos chegam como páginas de um diário musical. Ouvir Keane leva-nos numa viagem pela nossa mente, trazendo à memória as nossas dúvidas, desejos e os medos que, através das letras profundas e intimistas, nos surgem mais claros.
Mais do que fazer-nos reflectir, as suas canções parecem surgir como um sopro de ar, quase como que uma oportunidade para pairar sobre a nossa consciência.
Acompanhado de forma subtil por Tim Rice-Oxley, compositor e pianista, e Richard Hughes na bateria, Tom Chaplin dá a voz – por sinal, uma das mais talentosas do panorama musical – a uma das bandas mais aplaudidas em todo o mundo.
Mais do que estar perante música de qualidade, ouvir Keane leva-nos a estar connosco mesmos, com o íntimo que poucas bandas conseguem tocar de forma semelhante.
Na verdade, caracterizam-se por uma estranha ambiguidade de sentidos: um género leve e ligeiro, pela melodia maioritariamente calma e instrumentos de teclas, mas igualmente profunda e forte, no que respeita ao conteúdo emocional que contemplam; da mesma forma, adquirem um tom reflectivo e, por alguns intitulado, de depressivo devido às letras extremamente realistas e assentes nas ansiedades da consciência humana, e, ao mesmo tempo, de esperança, uma mensagem de esperança sempre implícita quer nas palavras quer nas melodias entusiastas.

“Oh, crystal ball, crystal ball, Save us all, tell me life is beautiful”

Certa é a impossibilidade de ficar indiferente. Existirá sempre uma música de Keane, nem que apenas uma, que nos faça sentir sermos a origem o destino das suas palavras.
E se é verdade que a música tem o poder de nos transformar, a destes britânicos, que iniciaram este projecto há pouco mais de oito anos, reflectem-no na sua totalidade. “What I am isn’t what I was”, cantam em Try again e é a autêntica realidade daqueles que se deixam absorver pelas músicas da banda.
Mas mais que falar sobre eles, é preciso ouvi-los e simplesmente não pensar em nada, deixar que seja a música a pensar por nós, porque no fundo
- “What do I know? I know”

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ainda, Alice


Hoje pensas ser tudo, amanhã descobres não ser nada - podia ser esta a forma de pensar esta história, mas tenho a certeza que cada um a idealizaria de forma distinta.

Imaginemos...

E se, de um dia para o outro, te esquecesses de quem és? Se não reconhecesses os teus familiares, as pessoas que te viram crescer e aquelas que cresceram por ti? Se não soubesses o teu nome, aquele conjunto de letras que sempre tatuaste no papel?

Como reagirias se desses contigo perdido naqueles lugares onde te habituaste a desenhar a tua sombra, a escassos dez passos de casa? Se tentasses lembrar-te daquela palavra, aquela que, tens a certeza, está na ponta da língua, mas que por uma razão que não aceitas admitir não se atreve a ser soletrada?

Como te sentias se o teu mundo, aquele que sempre te pertenceu, te fosse fugindo das mãos, roubado...por ti mesmo?

Infelizmente não se trata de um retrato de um filme de ficção ciêntifica, nem muito menos Alice, a protagonista, é um caso raro entre milhões. Ainda, Alice é um livro real, uma história viva e impressionante acerca da doença de Alzheimer e da queda pessoal a ela inerente.

É-nos dada a conhecer uma mulher viva, activa, uma guia para os quantos partilham a sua casa e que, dia após dia, se vê confrontada com a perda da sua identidade; uma mulher que em cerca de dois anos não reconhece o seu reflexo no outro lado do espelho.

Mais que uma história, este livro revela-nos uma verdadeira lição de vida, uma oportunidade para pensarmos em tudo aquilo que temos adiado numa esperança da melhor ocasião, aquela ocasião que para Alice já não existe.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Perdoa-me...


Quantas vezes já a ouviste? Quantas vezes já te tentaram roubar o coração e pintar-te cristais na íris do teu olhar com essa palavra?
Não te recordas… Descansa, não é grave. Encontrei muitos mais como tu.
Mas diz-me, quantas vezes a disseste? Quantas vezes a deixaste deslizar-te pela língua, mesmo em frente daquele que sentia culpa?
Não sabes… Desta vez, não posso sossegar-te.
Querias um perdão, esperas consegui-lo sem que o tivesses consentido, sem que tivesses cosido com a linha fina do arrependimento os rasgos das tuas falhas.
Deixa-me sussurrar-te algo ao ouvido: isso não é correcto. Sim, não te julgues perfeito, intocável. Também erraste, também fizeste outros chorar, além dos sorrisos que ensinaste; também provocaste feridas para lá daquelas que ajudaste a curar; também faltou em ti aquela palavra meiga e doce, aquela que a tua memória não encontra aí dentro.
Não, ninguém mo confessou, ninguém te caricaturou como um monstro cruel…sossega. Mas eu sei. Eu sei que falhaste. Sei-o, porque simplesmente seria impossível seres perfeito – como o somos, todos – sem imperfeições; porque se nunca tivesses errado não existiriam cicatrizes da vida em ti e, sim, serias invisível, vazio.
Levanta o olhar. Olha para mim, para o mundo que, como vês, é imperfeito mas nos permite olhar um para o outro. E não penses que nunca mais vais falhar. Pensa antes em como tapar as armadilhas que espalhas sem querer.
Pensa em como dizer essa palavra. Podes não ser capaz agora, compreendo. Mas, quem esperou por te ouvir, saberá reconhecer a demora.
E, acredita em mim, eles saberão…Perdoar.

sábado, 12 de setembro de 2009

O cheiro do Teatro - "Piaf"

O burburinho na sala faz-nos cócegas nos ouvidos. Mal se distinguem as vozes ou até mesmo as idades dos que nos rodeiam. Há sempre aquele entusiasmo antes do início.
As luzes são ainda intensas em volta de todo o espaço, só daqui a uns minutos os projectores no palco ganharão vida silenciando toda a plateia e deixando-a em escuridão.
Silêncio.
E então, de repente, rompendo do fundo do palco surge a por todos aguardada Édith Piaf. A sua voz preenche a sala, que entretanto se tornou pequena perante a sua figura magra mas emersa em prestígio.
Estamos no Teatro Politéama. E não, infelizmente, Piaf não ressurgiu das cinzas para uma última apresentação, é Sónia Lisboa quem se nos revela, vestindo o papel da grande cantora francesa – e mesmo, melhor de todos os tempos.
Como já seria de esperar para quem segue de perto os passos do grande Filipe Lá Féria – ou surpreendendo-se quem não tem esse costume – é-nos apresentada uma biografia viva da diva, uma oportunidade única, diria, de perscrutar, como um fã sem coragem de se aproximar do ídolo, toda a vida, trabalhos, concertos, amores – e foram tantos! – E desilusões desta intérprete de clássicos como “La vie en rose”.
Um elenco pequeno mas absolutamente talentoso, um guarda-roupa alusivo aos conturbados anos quarenta, acompanhados de perto pela segunda Grande Guerra, mas sempre envoltos no crescimento, ascensão e, mais tarde, declínio de Piaf.
Noémia Costa desliza pelo palco com mestria trazendo ao de cima a companheira de rua, a única amiga que nunca abandonou a protagonista. Certamente uma das grandes presenças em cena.
Um cenário simples, quase inexistente, contribui para o crescente intimismo da peça, revelador dos sentimentos profundos da cantora.
O espectáculo é findo ainda antes de completas as duas horas em cena. O público ganha de novo papel activo na plateia. De pé, absorvido ainda pelas vozes magníficas dos actores aplaude por longos minutos, de mãos levantadas no ar num gesto simbólico de agradecimento.
É por isto que vale a pena ir ao teatro: sente-se o cheiro da madeira do palco, o timbre das vozes, o reflexo das reacções nos quantos partilham a experiência connosco. No fundo, sentimos que fazemos parte do espectáculo.

Deixo-vos uma pequena amostra. Espero que desperte a curiosidade :)
http://www.youtube.com/watch?v=wsZIDXrA_aQ

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Escuta...


"O valor das coisas não está no tempo em que duram, mas na intensidade com que acontecem.
É por isso que existem momentos inesquecíveis,
coisas inexplicáveis
e pessoas
incomparáveis"


F. Pessoa

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Voltei a tentar


Voltei a tentar
Voltei a abrir os olhos cansados
Estiquei o braço adormecido
E segui os teus passos apagados

Mais uma vez tentei sozinha
Olhei os teus olhos fechados aos meus
As palavras feriram o toque das mãos
Os argumentos que eram teus

Tentei sozinha porque sonho
Tentei que soubesses escutar o coração
Mas tu esqueceste o som da minha voz
Tu já não sabes tocar a minha mão

Tudo o que era belo no meu ver
Tornaste escuridão sem estrelas
Tudo o que construímos sem saber
Está agora abandonado pelas ruelas

Mas eu voltei a tentar
Tentei que fossem os meus sonhos a falhar
Tentei que fossem os pés a fugir do caminho
Prometi que essa voz sempre me iria tocar

E tocou e feriu novamente
Deixou pedras soltas na estrada
Levou tudo o que restava na mente

Dizes que não
Mas eu tentei, tentei uma última vez
Mas tu fizeste desta a derradeira
Olha o que isto nos fez

Agora já nem vejo o brilho
O teu olhar parece apagado
Procuro o que de ti resta
Mas está tudo tão abandonado…


Talvez tenha tentado de mais
E o esforço nos fizesse sufocar
Se calhar perdi o rumo ao tanto procurar

Mas é isso que é tentar
Procurar a última flor no frio do Inverno
Procurar o lugar, a hora
A altura em que o amargo levou o terno

E eu tentei
Quis descobri-la para o apagar
Mas só agora percebi que o não posso
E sim, a verdade é essa
- Cansei-me de tanto tentar…

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A consciência do olhar

Era tarde. Fim do dia., talvez. O sol punha-se, ao fundo, no horizonte banhado pelo Tejo. As horas, o dia são dados sem importância, quer na altura, quer de momento.
Vagueava pela rua. Os passos cruzavam a calçada suja. Envolta em pensamentos que julgava serem os mais delicados e recheados de um valor que tocaria muitas das pessoas que me rodeavam, quase tropecei nos pés de velho homem sentado sobre o chão da cidade.
Olhei-o.
Olhei-o de uma forma como nunca antes fitara um desconhecido. Depois afastei-me, dando dois ou três passos atrás.
Tarde de mais. O velho homem de barba grisalha e roupas rasgadas havia notado a minha presença e era impossível virar-lhe as costas.
Ele olhou-me. Não posso jurar, mas creio que sim, aquela foi a primeira vez que olhei profundamente nos olhos de um mendigo de rua. Ele parecia indiferente à minha presença, apesar do pedido de ajuda que deixou desenhar-se no azul empoeirado do seu olhar.
Não me estendeu a mão. Mas, num gesto que me daria muito mais riqueza que aquela que lhe poderia doar, sorriu-me. As suas carregadas rugas de expressão em torno da boca seca toldaram-lhe o rosto num frágil – mas aparentemente sincero – sorriso meigo.
Depois baixou o rosto e, deixando cair a boina em farrapos que escondia o emaranhado do seu cabelo quase branco, voltou à inércia. À rotina do passar das horas.
Naquele fim de tarde senti-me mergulhar com o último rasto de sol nas águas doces do rio. Agarrei nas poucas moedas que trazia no bolso, troco de uma compra da qual já não me recordava, e deixei-as cair sobre a lata quase vazia que o velho homem tinha nas mãos. O tilintar do dinheiro despertou-o do seu ilusório dormir e voltou a olhar-me.
“Obrigado”, era o que o cristalino dos seus olhos me sussurrava agora. Mas não era o pouco dinheiro que ele agradecia. Era o sorriso leve que lhe revelei.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Origens

Origens.
Procuro esta palavra no dicionário. Não anseio pelo que vou encontrar, nem muito menos espero descobrir algo que já não antes soubesse. No fundo, esta é somente mais uma palavra das muitas que ouvimos toda uma vida, sem que deixemos uns segundos para nela reflectir.
Finalmente encontro-a e, tal como adivinhava, nada no seu significado me faz compreendê-la melhor. Causas, Procedências, Fontes e umas quantas outras palavras que, tal como a primeira, nos mergulham num mar de significados sem, no entanto, qualquer sentido aparente.
Afinal por que razão existem estas palavras? Todas elas, os milhares de junções de letras perdidas nessas folhas, algumas com idades ancestrais, outras recentemente acrescentadas ao nosso vocabulário. Algumas são certamente quase inúteis ou simplesmente ausentes de conteúdo; mas há outras. Existem palavras que, por mais tentativas em descobrir-lhes o sentido, nunca se nos mostrarão totalmente se não quando desvendadas de outra forma, com a alma; há palavras que nenhum dicionário consegue aclarar, que nenhuma caligrafia poderá reproduzir perfeitamente; palavras que, porém, são tudo o que temos, o que fomos e seremos. E foi isso que acabei por descobrir ao fechar o dicionário ingenuamente aberto; descobri que há coisas que os livros não explicam, que só o mundo e a vida podem decifrar.
Origens.
Pensando bem, que estranha palavra, essa, que nos acompanha toda uma vida; que nos rodeia o horizonte e preenche o coração. Uma palavra que foi o nosso início e se atreve a desenhar-nos o futuro; uma mera palavra que, apesar de fazer de nós quem somos, é muitas vezes posta de parte como um mal a esquecer, um passado a deixar lá atrás. Felizmente há alturas em que ela se cansa de estar encerrada nesse baú e salta cá para fora, diante ao olhar. Mesmo quando menos o quisermos, alguma vez ela virá à nossa procura. Tal como o dia que nasce escuro e se põe em crepúsculo novamente, algum dia, também nós somos obrigados a voltar a esse princípio, ao nosso berço.
Origens.
Somos nós próprios; nós e o único lugar capaz de nos fazer sorrir verdadeiramente; o único capaz de brotar as lágrimas mais genuínas. Aquele sítio, onde o nada que somos se une com o tudo que o Mundo é.
Também eu conheço um lugar assim.
E esse não mora longe, nem muito menos se encontra encerrado num livro qualquer. Por mais distante que estivesse de mim seria sempre possível chegar-lhe com as pontas dos dedos, com a ponta do coração. Lá, sei que nunca estarei perdida. Naquele recanto do meu mundo sempre encontrarei a chave dos sorrisos.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Acredita


Acredita.
Simplesmente acredita. Mesmo se souberes que és o único. Mesmo quando não for correcto acreditar.
Acredita que és capaz; que os outros também o serão. Que um dia a noite sucumbirá perante um suceder de dias de sol que farão o teu olhar brilhar.
Acredita.
Crê em ti e naqueles que te estenderão a mão quando se sentirem a desistir também.
Acredita no salgado do mar mesmo quando os teus passos se afastarem da rebentação. Acredita no doce daquela flor mesmo quando a neve do Inverno a revelar invisível.
Tu sabes que eu também irei acreditar. Por isso não desperdices este dia a olhar pela janela do teu quarto.
Acredita.
Acredita que consegues saltá-la, que consegues correr até ao fundo da rua; que na esquina vais encontrar o reflexo do teu olhar.
Acredita quando te disserem “sim” e quando as letras perfizerem o “não”. Acredita porque o queres e não porque to suplicam. Não precisas de mostrar que o fazes. Basta que os teus músculos o saibam e não parem de se mexer.
Acredita.
Acredita naqueles que te sorriem; naqueles que te olham com admiração. Acredita nas lágrimas que te pedem ajuda e no desespero daquele que te olha de mão estendida. Acredita no amor e na sua força encorajadora. Acredita no ódio e afasta-o do teu peito. Acredita no bom e crê que consegues viver sem o mau.
Não finjas que dormes.
Acredita porque eu acredito em ti.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Sonhar de olhos abertos



Imagine there's no Heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too

Imagine all the people
Living life in peace
You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man

Imagine all the people
Sharing all the world
You may say that I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will live as one

Imagine
John Lennon

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Sentes a minha pele?...

Sentes a minha pele?
Sentes o calor que dela emana?
És capaz de saber que eu te toco
Como só o faz quem ama?

Ouves a minha voz?
Percebes as palavras que te dedico?
Será que entendes que sem as tuas
É numa noite em silêncio que fico?

Vês o meu olhar?
Olha e vê como brilha por te ver
Porque é que apagaste as luzes do caminho?
Porque não me deixas voltar a perceber?

Dá-me a tua mão
Sou apenas eu, aquela que nunca estranhaste
Abre-me de novo o teu coração
Volta a falar-me com o carinho que mostraste

Prometo ficar a ouvir-te em silêncio
Como se te confessasses ao Oceano
Deixa sair tudo o que te magoa
Sei que não és cruel, és humano

Mas enquanto finges não me ver
Enquanto me impedes de te tocar
Prometo ficar apenas a olhar-te
Espero o momento em que saibamos não nos magoar

domingo, 19 de julho de 2009

Tatuar pegadas


Diz-me do que foges.
Do que tens medo, afinal?
Diz-me como te acalmar, como adormecer o pesadelo que te mantém acordado.
Suspiras em desespero. Pedes ajuda num grito mudo para que ninguém corra para ti. Porquê. Era o que esperavas que perguntasse. Mas não o farei.
Diz-me quem te prendeu nessa gaiola de insegurança. Conta-me porque perdeste as forças para a saltar.
Corres. Buscas fora de ti algo que te pertence. Algo que nenhum outro te poderá dar.
Pareces tão frágil mas guardas um grito que juraria não poder existir.
Olhas inerte o horizonte. Olha-lo como se o respirasses. É para lá que corres? Onde fica esse lugar? Sabes?
Vais dizer-me?
No dia em que a tua pegada ficar marcada na areia, como se o mar acalmasse e as ondas não mais varressem os nossos passos, dizes-me?
Ou vais cumprir esse juramento? Vais ser fiel à brisa que te trouxe e que me fizeste saber um dia te tornaria a levar…
Eu sei que choras para lá desse sorriso. Sei que gritas no silêncio desenhado pelas palavras fingidas.
Nas noites de trovoada escondes-te a um canto e procuras as estrelas. Tens medo. Mas sabes que ninguém te estenderá a mão, nessas noites.
Não queres sair à rua neste dia de sol? Porque preferes correr quando a chuva te lava a pele?
Não preferias respirar a brisa fresca em detrimento da poeira do teu castelo abandonado nas dunas?
Pintaste nas paredes a solidão em que te deixaram. Pensaste que ninguém a leria. Pensaste que não teria coragem de lá entrar.
Mas também eu sentia medo na noite de tempestade e dei esses passos. Procurei-te mas tu escondias-te tão profundamente que a noite caiu.
E estou aqui. Sentada a teu lado no chão frio destas muralhas. Só venho limpar-te as lágrimas que escorrem pela tua face, invisíveis aos olhos. Só venho ficar a teu lado nas noites de trovoada. Para que não tenhas medo.
Não pares de correr, de enterrar as pegadas no areal. Mas corre quando o sol te beijar a pele. E quando estiveres cansado volta o rosto para o mar e procura de novo o horizonte.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Frágil...

Olhou em redor. Susteve aquele suspiro que lhe cortava a respiração e fechou os olhos.
Só depois respirou. Inspirou profundamente e sentiu o puro do ar exterior invadir-lhe o corpo.
Estava tudo tão calmo. Ou pelo menos conseguia não sentir nada, nem sobressalto, nem harmonia.
Sentou-se sobre o chão e fechou-se sobre si mesma. Agora, ali, nada mais a perturbava.
As horas passaram. As cores da natureza transformaram-se. Em si tudo se manteve inalterado.
O mundo parecia ter adormecido finalmente. Tal como suplicara nas horas de desespero.
Por fim algo serpenteou pelo seu olhar. No negro desenhado pelas suas pálpebras encerradas uma sombra fê-la despertar daquela apatia. A calma era, porém, tão magistral que preferiu não ter reacção.
Depois um arrepio surripiou pela sua pele. Algo pousara sobre o seu braço nu.
Num esforço do qual pensara não ser capaz segundos antes, ergueu o rosto e reabriu os olhos. A luz era intensa lá fora, fora do escuro no seu intimo.
Rodou o pescoço e contemplou o pulso magro. Uma onda de cor e seda mergulhou nos seus olhos cristalinos.
Uma borboleta.

As suas asas pareciam ir desfazer-se caso um sopro de vento mais forte lhe tocasse o corpo, mas o azul que emanavam era profundo. Forte.
Parecia tão frágil. Não teria medo de voar?
Ela olhou-a. Em breves segundos, a frágil borboleta levantaria voo da sua pele fria e enfrentaria o mundo que tanto a assustava.
Esticou o braço e ficou a mirá-la. Era deslumbrantemente bela e perfeita.

Será que o mundo lá fora a merecia?
As suas pequenas antenas rodaram na sua direcção. Por breves instantes teve a certeza de que o pequeno animal a observava. Depois soltou as asas sedosas e agitando o ar em seu redor deixou-se deslizar na brisa do anoitecer.
Ficou a observá-la como se olhasse a sua vida a serpentear à sua frente.


Na noite seguinte sentou-se sobre a pedra meio quente da rua. Não voltaria a fechar os olhos ao mundo que a abrigava.
Não o faria por nenhuma razão misteriosa. Queria somente que, quando a frágil borboleta a visitasse, os seus olhos encaminhassem as suas asas para o descanso da sua pele. Para que ambas partilhassem o momento de sossego no refúgio do mundo inquiridor.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Abraça-me

Aproxima-te. Não fiques tão distante, tão longe do alcance da minha mão.
Chega mais perto. Acosta-te ao meu coração. Só um pouco mais profundamente. Só para que te possa sentir mais dentro.
Dá mais um passo. Só mais um. Só então estaremos juntos o suficiente. Só então deixarei que o meu braço se estenda em frente do teu e te toque a pele arrepiada.
Ergue o rosto. Deixa que te leve esses sonhos cruéis. Deixa que a luz toque os teus olhos tão adormecidos no negro triste da noite. Deixa que os meus toquem os teus num sussurro que mais ninguém possa ouvir.
Toca a minha pele. Agarra a minha mão e aperta-a forte contra ti. Agarra-a com força, só um pouco mais. O que sentes? Protecção? Ofereço-ta sem preço. Ofereço-ta para que amanhã me a possas emprestar naquele momento difícil que sei que virá.
Agora estende o braço. Num último esforço, um último suspiro de alívio, numa busca de vida fora de ti. Pousa-a delicadamente sobre o meu ombro e chega-te mais perto.
Encosta o teu corpo ao meu e envolve-me nos teus braços quentes. Pergunta-me o que sinto…O medo desapareceu.
Sussurra-me algo ao ouvido. Palavras das quais não vá lembrar-me mais tarde, daquelas que durem só um momento mas que afastem os pesadelos.
Aperta o meu peito contra o teu e encosta o teu rosto sobre o meu ombro. Solta os teus medos e leva os meus. Podemos ficar assim eternamente. Neste abraço que mais ninguém compreenderá.
Fecha os olhos. Encosta as duas pálpebras adormecidas. Recorda o último abraço, a quentura que trouxe ao coração. É lá que sempre as inseguranças ficarão guardadas. O fundo da tua alma que partilhas de cada vez que este laço é apertado.

domingo, 12 de julho de 2009

Saudade




Estranha palavra, essa
Que nos inunda por vezes o ser
Abala tudo como uma onda
E, nos deixa sós a sofrer

Sem ninguém dar por si
Envolve e aperta o coração
Invade-nos o pensamento e a alma
Tornando o intimo uma confusão

De repente preenche-nos o olhar
E faz murchar a Primavera
Tudo à nossa volta esmorece
E nos faz pertencer a outra era

Temos vontade de fugir
De gritar por liberdade
Mas quanto mais a afastamos
Mais ela aperta e nos invade

As lágrimas escorrem pela face
Como cristais que choram também
Tentamos agarrá-los, desfazê-los
Para que os não veja ninguém

É esse um sentimento puro
Que não podemos controlar
Permanece calado e mudo
Até que a distância o faz disparar.

sábado, 11 de julho de 2009

Silêncio

Soam vozes, gritos, palavras imperceptíveis ou às quais somos, pelo menos, indiferentes. Cercam-nos intermináveis luzes ofuscantes, brilhos tremeluzentes, muitas vezes reflexos do sol transparecido nas janelas em redor. Caminhamos com passos pesados sem rumo à vista, ou acorrentados a uma rotina que esconde o mesmo horizonte. E, finalmente, chegamos a casa, deixamos cair o corpo cansado sobre uma almofada aconchegante e, então, fechamos os olhos e procuramos esse silêncio. Pensamos que, como por magia, todo o resto do mundo deixará de existir, tudo porque, naquele instante, nos percorre uma necessidade de calma, de não sentir nada, ou melhor, de fingir que aquilo que se sente não é importante. O silêncio é afinal um destino; buscamo-lo como a uma meta, mas torna-se muito mais difícil de se achar que qualquer caminho ou fim do mesmo.
Gosto desta palavra e gosto simplesmente pelo que transmite, como que se por simplesmente a deixar deslizar pela minha língua, fosse já possível alcançar o estado a que remete. O silêncio não é uma ordem, não é uma pretensão, acaba por ser apenas um vazio, uma forma de estarmos connosco mesmos. E, às vezes, queremos tanto pegar-lhe, alcançá-lo que basta pensarmos no silêncio para que surja na nossa mente um xiu interior, e tudo se torne profundamente calmo.
Algo me leva, porém, a acreditar que esse dito silêncio não existe, pelo menos não na forma que lhe damos. O que me faz lembrar o silêncio? O escuro, um lugar sem focos de luz intimidantes, onde não há sombras nem movimentos que sem querer acabam por roubar o sossego. Sim, mas e esse lugar existe? Pensando com afinco descubro que não. Nem a noite mais escura sem estrelas ou sem aquele luar brilhante que faz parecer que o sol apenas perdeu intensidade consegue ser totalmente negra. O escuro é assim uma palavra ilusória.
O que mais me faz pensar no silêncio? Ausência de ruído, uma absoluta inércia de som ou de vozes, por mais tranquilizantes que o sejam. Pensemos nisso: ausência de som. Seria isso possível? Olharmos em redor, buscarmos o que nos rodeia sem que qualquer ruído fosse notado? Acho que não. Há, de facto, momentos em que pensamos ter chegado a esse estado, em que tentamos com tal força da mente que tudo se cale para ouvirmos apenas o vazio, que julgamos estar em silêncio, mas é igualmente ilusório. Se simultaneamente não houvesse vento, nem a proximidade das ondas do mar a bater nas rochas e todos dormissem, inclusive os animais, mesmo o mais pequeno insecto, outros barulhos surgiriam. Iríamos aperceber-nos da existência de coisas que até então desconhecíamos - ou ignorávamos - como o bater compassado do nosso coração, que então pareceria querer fazer ouvir-se mais que nunca.
Silêncio. Começo a pensar que tenho vivido enganada. Começo a aperceber-me de que o silêncio é uma forma egoísta de fazer com que, num momento escolhido a meu querer, o resto do mundo deixe de viver, tudo para que eu possa descansar tranquilamente. Quem sabe se, neste momento, um outro alguém, novo ou velho, feliz ou triste, busca um recanto pacato, um silêncio absoluto, e eu, eu que me julgo capaz de o definir, quebro essa possibilidade provocando um estranho ruído com a ponta da caneta contra esta folha branca. Para mim está o silêncio perfeito, mas para esse outro, qualquer perturbação pode quebrar a sua calma. É o que estou a fazer.
Apercebo-me de que o silêncio não pode ser apenas físico; é antes algo interior. Sim, o silêncio deve, antes de mais, ser conseguido na nossa mente. Fechamos os olhos, tentamos apagar os vestígios dos ruídos do nosso pensamento e deixamos que o escuro produzido pelas pálpebras fechadas e a ausência de som provocada pela nossa mente vazia saltem cá para fora. Parecerá então que todo o mundo se calou para nos deixar dormir, e que todas as luzes limaram as arestas para não nos ferir. Silêncio.
Sim, acho que é isso que sentimos: silêncio. E desta vez não fomos egoístas. Desta vez, não mandámos calar as pessoas em redor; nem desejámos a noite mais negra quando duas crianças brincavam ao sol; desta vez, conseguimos alcançar o que queríamos sozinhos. Acho que é afinal isso o silêncio. É deixarmos que seja a paz a vir ter connosco, da forma como dela precisamos no momento, sem que ela falte aos outros, da forma como dela também precisam nesse instante.
E enquanto leio estas palavras? Também quebro o silêncio? Se para mim ler é tranquilizante penso que não, mas e se numa ocasião as palavras me gritam ou choram, como posso ignorar o som?
Afinal o silêncio é difícil de definir. Acho, enfim, que basta pensá-lo e esperar que esse esforço acalme a mente sem que a deixe adormecer, sim, porque corremos o risco de ter um pesadelo, onde os ruídos estilhacem, como que se de um cristal se tratasse, o silêncio que havíamos conseguido.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Respirar

Preparo-me como de todas as outras vezes
Mantenho-me hirta, estática, serena
Dou um passo, só mais um único passo
Paro então, e deixo-a atingir-me plena

Primeiro abala-me como uma onda
Sinto que quase me derruba no chão
Não luto contra a sua chegada
Deixo que o arrepio chegue primeiro ao coração

Finalmente sinto-a vaguear pelo corpo
Percorre-me num sopro, um instante
Lava-me a alma, varre-me a pele suja
E quando me liberta tudo fica distante

A sensação de arrepio permanece
Como a água no fim da tempestade cruel
E só então reabro os olhos agora adormecidos
E vejo como tudo é simples como uma folha de papel

Expiro
Olho o relógio
Mais um segundo passou

A última lufada de ar atingiu-me como uma onda
Varreu a areia que se acostara ao coração
Lá deixou o espaço para uma nova onda de ar fresco
Aquela que me atingirá o corpo, beijando primeiro a minha mão

Respiro novamente
O sufoco passa por momentos, como sempre
A praia está deserta, a areia recuou aos meus pés
As ondas de espuma formam-se à minha frente

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Apenas uma ideia de cansaço...

Folhas rasgadas e dispersas, sombras onde antes havia pessoas, um silêncio constrangedor onde reinava uma agitada sinfonia de ideias transpostas em papel. Podia ser este o retrato dos vestígios de um velho jornal, de um lugar onde já antes milhares de novidades afluíram, onde se criaram histórias, se enalteceram lágrimas e reproduziram sorrisos. Podia ao menos sobrar a imagem de lembrança, o reconhecimento, aquela estranha sensação de olhar um sítio onde, apesar de o nosso passado não ter pisado, se consegue vislumbrar tudo como no outrora findo.
Estranhamente nenhuma destas sensações me aflorou a pele, nem mesmo um sensível entusiasmo, ao percorrer os locais onde antigamente outros iniciaram a jornada que se me afigura. Apenas uma ideia de cansaço, de fim de história e talvez até de saudade foi transparecida pelas vidraças das janelas fechadas ou destruídas dos edifícios antigas sedes de jornais. Nesse passado nunca esperariam, de certo, este futuro que parece ter-se esquecido como simplesmente levantar a caneta para rabiscar uma palavra.
As ruas sujas do Bairro Alto mostram agora outras ideias; revelam uma nova geração de pensadores e “artistas” se assim se pode chamar a esses que deixam o seu rasto de tinta pelas paredes, numa tentativa de se auto afirmarem.
Ironicamente acabo por conseguir fazer uma analogia com esse passado tão apagado. Também antes o Bairro Alto era sinónimo de jovens mãos irrequietas que se mantinham a pé toda a madrugada, marcando palavras e ideias novas lidas na manhã seguinte por uma multidão de olhos atentos aos ardinas madrugadores. É precisamente aí que reside a diferença: porque se dantes eram as folhas a preto e branco dos matutinos e vespertinos, agora tornou-se tudo bem mais fácil e até mais barato. As noites continuam vivas pelas ruelas do bairro que não dorme e a luz do dia traz ao de cima uma manchete de cor e palavras vivas.
Qual é então a diferença?
As folhas cinzentas distribuídas com o sabor a recompensa já não saem quentes pelas ruas do agora aparente bairro fantasma. Saltam aos olhos de quem passa outro tipo de palavras, outro género de caligrafias, com um sabor a abandono, a vandalismo. Graffiti, sim, acho que é esta a nova palavra de ordem, aquela que substituiu a de informação, e tentou apagar a marca do trabalho, pintando morais de rebeldia. De grandes nomes como “A Capital”, “O Mundo”, “O Século” restam as memórias, as letras dispersas e quase inaudíveis por entre as conversas dos mais velhos, aqueles que sentados sobre os bancos dos cafés do bairro parecem nem reconhecer as fachadas desses jornais onde tantas notícias nasceram.
Continuo a caminhar. Um sorriso rompe-me na face. Finalmente descubro que o coração do trabalhador Bairro Alto não parou por completo. Escondido numa das ruas escuras, o jornal “A Bola” parece fiel ao passado. É o único que sobrevive rodeado agora pelas paredes negras e rabiscadas da presente liberdade.
Perco-me em pensamentos, em desilusão. É esta a imagem do futuro; é este o fim de linha de anos de trabalho; a última edição de um mundo de jornais que ficou perdida no tempo, à espera de ser notícia.

Crónica sobre o Bairro Alto elaborada para a cadeira de LGJ

Sound the Bugle

Sound the bugle now - play it just for me
As the seasons change - remember how I used to be
Now I can't go on - I can't even start
I've got nothing left - just an empty heart

I'm a soldier - wounded so I must give up the fight
There's nothing more for me - lead me away...
Or leave me lying here

Sound the bugle now - tell them I don't care
There's not a road I know - that leads to anywhere
Without a light feat that I will - stumble in the dark
Lay right down - decide not to go on

Then from on hight - somewhere in the distance
There's a voice that calls - remember who your are
If you lose yourself - your courage soon will follow

So be strong tonight - remember who you are
Ya you're a soldier now - fighting in abattle
To be free once more -Ya that's worth fighting for

Banda sonora do filme Spirit
Bryan Adams

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Há sempre um início

Começar. Esta é definitivamente uma das palavras que tenho na lista das coisas difíceis. Não pela dificuldade de a escrever. É, pelo contrário, uma palavra simples de desenhar no papel. Complicado é perceber que ela tem de ser posta em prática.
Começar alguma coisa é sempre um compromisso. Decidimos que queremos iniciar algo, logo devemos ter a ideia de um dia a terminar. E penso que é isso que torna os "começos" sempre tão adiados...porque, no fundo, esse fim me intimida profundamente.
Pensando bem acho que sou uma fugitiva, tanto dos começos como dos finais. Prefiro escrever os "meios" e prefiro também pô-los em prática.
Mas hoje peguei na caneta, alisei a folha branca de papel e consegui: escrevi a primeira palavra. Sim, acho que foi isso que fiz, um começo. Começo de quê? Ainda não sei ao certo. Mas até hoje nenhuma palavra me levou a um qualquer rumo que não soubesse conhecer. Bastou que parasse a ouvi-las...a respirar a sua essência.
E é isso que vou continuar a fazer, a respirar as palavras...